Ex-ministro de Direitos Humanos do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o jornalista e cientista político Paulo Vannuchi diz que o Supremo Tribunal Federal (STF) deve uma resposta ao país e à comunidade internacional sobre a exigência de investigação de agentes do Estado envolvidos em mortes, torturas e desaparecimentos no período ditatorial.
A exigência consta de uma decisão de dezembro de 2010, da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determinou investigação individualizada desses crimes. “O Supremo está empurrando com a barriga. Já se vão quase quatro anos”, acusou o ex-ministro em entrevista ao iG.
“Não defendo açodamentos. Ou o Brasil descumpre a ordem e isso é uma péssima sinalização como país que avança na democracia, ou ele acata. Isso depende de uma decisão da nova composição do Supremo”, disse.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão judicial autônomo que tem sede em San José, na Costa Rica, e tem a função de aplicar e interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos e outros tratados de Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário. O órgão faz parte do chamado Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
Vannuchi é membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), mas fez questão de frisar que sua cobrança e suas declarações referem-se a sua atuação como “militante de direitos humanos”.
Ele criticou as recentes utilizações da Lei de Segurança Nacional para punir manifestantes, o crescente processo de criminalização dos movimentos sociais e as tentativas de se fazer leis que punam com mais rigor manifestantes. Para ele, esses movimentos representam resquícios do pensamento autoritário.
A eliminação destes “entulhos” autoritários, segundo ele, é papel dos três poderes. “Eu, às vezes, brinco com o tema dessa Lei de Segurança Nacional porque o ‘inimigo interno’ é hoje a presidenta da República, Dilma Rousseff, que estava presa, sendo torturada no DOI-Codi. Hoje, ela é a presidente da República. Então, todos os policiais, os delegados, ao promoverem seu trabalho de segurança, têm que levar isso em conta”, disse ele, que é defensor ainda da proposta de desmilitarização da polícia.
IG – O que o senhor acha das recentes utilizações da Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura militar, para punir manifestantes no campo e na cidade?Paulo Vannuchi – A Lei de Segurança Nacional é fruto de um período de ditadura no Brasil e, no cenário internacional, da Guerra Fria. Além disso, é uma doutrina, chamada de Segurança Nacional, que estabelecia a existência do inimigo interno. Eu, às vezes, brinco com o tema dessa lei porque o inimigo interno é hoje a presidenta da República, Dilma Rousseff, que estava presa, sendo torturada no DOI-Codi. Hoje, ela é a presidente da República. Então, todos os policiais, os delegados, ao promoverem seu trabalho de segurança, têm que levar isso em conta. O mundo mudou, o Brasil mudou. Então, evidentemente, não deveria haver nenhuma lei que guardasse nenhum resquício desse período.
Há um retrocesso?
Vannuchi – A gente sabe que existem pessoas na internet que escrevem, com franqueza, dizendo que o erro da ditadura foi não ter matado a todos, ter deixado algum sobrevivente como Dilma, como Genoino e José Dirceu, etc. Essas pessoas existem, pensam assim. São muitas vezes as mesmas que atacam homossexuais, que têm práticas racistas. Toda sociedade democrática tem um pequeno percentual de pessoas que defendem essa posição.
A Lei de Segurança Nacional está em vigor, embora não estivesse sendo utilizada há bastante tempo. O senhor defende sua revogação?
Vannuchi – O problema é que as leis são construídas geralmente na forma de aperfeiçoamento, mudanças, emendas. Sempre permanece uma memória do velho, do antigo. É claro que há dispositivos que lembram isso e, volta e meia, com a dificuldade da autoridade policial de enquadramento adequado, ocorrem essas reclassificações incorretas, até estúpidas.
Entidades na área rural, indígenas e quilombolas, além de manifestantes das áreas urbanas, queixam-se da crescente criminalização dos movimentos sociais no Brasil. O que o senhor pensa sobre isso?
Vannuchi – Movimentos reivindicatórios, movimentos sociais, ocupações em terras sempre são fundamentadas como direito à vida. Não se pode falar em crimes de roubo se alguém roubou um pão para comer, se roubou um pão para alimentar o seu filho com fome. Muitas vezes, a ocupação de terras é para produzir alimentos em defesa da vida. Então, classificar como delito contra a segurança nacional qualquer movimento por terra, por casa, por educação, por saúde, só pode ser explicado pela memória do longo período ditatorial. Há uma herança do passado que tem que ser removida. A queixa dos movimentos sociais é uma queixa correta, justa.
O senhor acha que é necessário que se faça leis específicas para tratar de atos violentos em protestos?
Vannuchi – O Brasil tem o Estado Democrático de Direito que, por definição, é o sistema que consagra a legitimidade do dissenso, da discordância, da disputa, inclusive o conflito, desde que ocorram no parâmetro da não violência, do respeito à propriedade pessoal. A ideia é que eu não posso eliminar uma manifestação. Se há uma manifestação que viola o direito de propriedade, já existe um capitulo da lei para isso. Se existe uma violência, um ataque, alguém é baleado, existem capítulos do Código Penal para a pessoa ser processada.
A quem caberia a tarefa de propor a remoção destes entulhos da legislação brasileira? É papel do Congresso, do Executivo ou do Judiciário?
Vannuchi – Eu acho que é papel de todos. Claro que é o papel primordial do próprio Legislativo, a quem cabe a ação legislativa, por excelência. O Congresso é também o local onde estão representados diretamente o voto do cidadão e a pluralidade partidária. Cabe ao legislativo fazer e ele faz, ele fez. Quando a gente fala em entulho autoritário, hoje, na legislação, é muito diferente da mesma frase que a gente já usava 20 anos atrás. Recentemente, a Lei de Imprensa foi revogada sob o argumento de ser também parte desse entulho. Algumas leis ainda se mantêm. É exatamente contra essas leis que os movimentos sociais e os militantes de direitos humanos se levantam e com toda razão. Como levantam também a ideia de desmilitarização da polícia.
O senhor considera necessária a desmilitarização da polícia?
Vannuchi – Sim. Isso não quer dizer que o policial seja uma pessoa que não vai ter armas mais, que não vai enfrentar o bandido, que não vai atacar o crime. Mas quer dizer que as polícias militares não podem mais seguir subordinadas. Um exemplo desta subordinação ocorreu no Rio Grande do Sul. O governador Tarso Genro quis fazer uma renovação de armamento da Polícia Militar gaúcha e não pode porque isso ainda é concentrado no Exército. Isso não tem o menor sentido. Isso tinha sentido no período em que se acreditava que havia uma guerra subversiva no Brasil, com inimigo interno, onde atuavam Genoino, José Dirceu, Dilma Rousseff, eu e muitos outros. Então, esse é um exemplo de entulho.
E quanto ao papel do Executivo?
Vannuchi – A remoção do entulho também compete ao Executivo. Não sei como está atualmente, mas quando veio a ideia de se precaver contra a violência dos black blocs, sobretudo para a Copa do Mundo, veio a ideia de banir o uso de máscaras. Eu reagi publicamente, questionando, divergindo, dizendo: olha o Brasil já tem todos os instrumentos legais para enfrentar a ação dos black blocs e de qualquer tipo de pessoa que venha promover arruaça, depredação, quebrar agências bancárias, orelhões. O que se precisa fazer como preparo para a Copa é um treinamento intensificado das polícias.
Em que sentido?
Vannuchi – Existe o chamado emprego legítimo da violência que permite ao Estado prender, um conceito que vem lá de Max Weber. Mas existem também, na medida em que os direitos humanos avançaram como compreensão universal, os conceitos de uso proporcional da força, o impedimento de armas letais em vários tipos de operação, o uso de uma arma não letal, o trabalho de antecipação por meio de ações de inteligência. Então, sair na rua tirando máscaras seria uma sinalização muito negativa para o mundo inteiro, poderia estimular uma juventude que não é black bloc a também sair às ruas. Estou falando de jovens que não gostam de black blocs mas que não gostam também de ser proibidos. As manifestações de junho do ano passado cresceram significativamente após a violência da polícia para reprimir a manifestação pelo passe livre no transporte público, naquela quinta-feira à noite em São Paulo. Isso fez com que muitos se indignassem e fossem para as ruas. Tanto é que a principal reinvindicação no outro dia de manifestações não foi nem por passe livre, mas foi contra a violência policial.
O senhor acha que o Supremo Tribunal Federal deve rever sua interpretação sobre a aplicação da Lei de Anistia?
Vannuchi – A Lei de Anistia não tem que ser revista porque rever uma lei de 50 anos atrás é uma enorme complicação jurídica diante do conceito universal de não retroatividade da lei. A Lei de Anistia de 1979 não protege torturadores. O Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão, por maioria de votos, errada, em 2010, com voto lamentável do ministro Eros Grau. Também há para o Brasil uma decisão de dezembro de 2010, portanto, depois da decisão errada do Supremo, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada na Costa Rica, sobre a Guerrilha do Araguaia, que determina ao Estado brasileiro que localize os corpos dos quase 70 guerrilheiros e apresente aos familiares, que promova ou complete os devidos processos de reparação administrativa e financeira e que investigue, de forma individualizada, quem são os agentes do Estado envolvidos nessas mortes, nessas torturas e nesses desaparecimentos. E que os indique nominalmente.
O senhor acha que há condições para isso diante da nova composição da Corte?
Vannuchi – A tarefa é do Supremo, que tem que examinar a decisão da corte de Costa Rica. O Supremo está empurrando com a barriga. Já se vão quase quatro anos. Não defendo açodamentos. Ou o Brasil descumpre a ordem e isso é uma péssima sinalização como país que avança na democracia, ou ele acata. Para isso, basta uma decisão da nova composição do Supremo. O Supremo já tem novos ministros e isso sempre altera as decisões como acaba de acontecer com o julgamento do chamado mensalão. A lei de Anistia não pode ser impedimento para esse tipo de investigação.
Por Luciana Lima – iG Brasília